O percurso artístico de Gisele Camargo é, desde o início, uma travessia pela paisagem que passa por trabalhos mais fortemente pictóricos como nas séries Erosões e Brutos e, também, nas séries que antecedem Paisagem-semente, exposição que faz parte de uma trilogia que abriga Tabuleiro e Construção.
Paisagem-semente é um desdobramento dos processos anteriores e, aqui, a artista adensa sua relação com a cor, fruto da amplitude da paisagem que a ela se revelou na Serra do Cipó. Neste lugar do cerrado mineiro – com montanhas, erosões e presença singular de mistérios noturnos, pedras, plantas e variados elementos naturais em constante mudança – a artista carioca teve contato com forças até então desconhecidas e descobriu uma pulsação que abriu espaço para um inventário de universos e de espécies que explodem, ramificam-se em uma catalogação infinita, gerando uma sintaxe visual própria com uma vibração cromática que abriga tons e nuances de morros, plantas, pedras e paisagens rupestres, o céu e o rasteiro abrigados na lógica do detalhe.
Composta por dez núcleos, a exposição é a síntese de um território que une o possível e o impossível. Os núcleos possuem paleta e tema próprios e se interconectam, por elementos extraídos do olhar da artista. Gisele Camargo aborda o desconhecido e presentifica as coisas das margens, da presença e do exílio de tudo. O décimo primeiro núcleo atravessa o cenário de forma instalativa e ajuda a misturar as categorias classificatórias: são luas, síntese daquilo que vibra no jogo de cor e paletas. Como enigma noturno, a lua pode orbitar outros núcleos e elementos ou pode ser, em si, um núcleo epifânico que revela a força cósmica de uma pintura atenta aos mistérios do céu, que captura o rastro de naves, satélites e planetas. A lua é também a pura presença da alteridade que nos afeta e modifica, pois revela a mudança das coisas no mundo.
O espanto que a artista preserva é também uma ética que inebria as fronteiras do que está perto e do que vive nos confins do olhar entre o humano e o não-humano – a natureza, a história, a matéria e o imaterial. No ensaio A vida sensível, Emanuele Coccia investiga a sensibilidade, através de uma nova compreensão das categorias do humano. Em seus escritos, o filósofo italiano propõe que olhemos o mundo, nos deixemos tocar pelos pensamentos vegetal, mineral e animal, e nos encontremos com uma espécie de “filosofia da mistura”.
Gisele Camargo forja Paisagem-semente a partir do mesmo ponto, no contato com uma sensibilidade advinda de um campo em que o humano também é e vive como imagem. Recolhendo cores, texturas, nuances e espessuras da natureza, a artista constrói um mundo visual que não usa a pintura como instrumento direto da representação da realidade, mas transfigura a realidade na forma e no conteúdo abrigando, em um mesmo gesto e em uma mesma mirada, as dimensões ética e estética. São fragmentos de mundos que formam um arquivo movente com camadas de tempo sobrepostas que, rasurando imagens e reescrevendo a paisagem, deixam fluir o campo da visibilidade, em uma amplitude que revela infindáveis relações entre o céu e a terra, capturando fragmentos e desvios guiados por sua profunda relação com a cor.
Goethe realizou suas primeiras investigações cromáticas diante da janela, como experimentação visual. Seu livro Doutrina das Cores apresenta a compreensão da cor como linguagem e abre espaço para análises dos fenômenos cromáticos. Para Gisele Camargo, a cor é também um fenômeno alquímico e mágico, que se dá diante do entorno e de sua “janela para o horizonte”. Em seu trabalho as cores e formas vivem sob um processo contínuo de mutação em que as propriedades cromáticas são formas de coexistências. Encarna-se na paisagem o mundo através da cor, que acessa a ausência e a presença. Como ensinou Matisse, a cor é sempre relação.
Paisagem-semente é a germinação de um ato estético e de pensamento, uma experiência sensível que abriga a relação entre o visível e o invisível e nos convida a olhar para as ondulações do que vemos, para as manchas que aparecem como enigma nas imagens. A paisagem é aqui uma experiência perceptiva que articula o ser humano e o mundo, um portal e um recorte de espaço-tempo aberto pelo horizonte. Gisele recolhe a germinação e faz com que a natureza representada pela paisagem rasure a tradição do ver e da visibilidade. Trata-se de transver o mundo através da imantação da cor e da imanência e transcedência que, aqui, operam juntas.
O que se decanta em cada núcleo reinstaura e coloca em causa o paradigma da visão, ao pretender tocar o intocável na imagem, figurar o infigurável alcançando o cosmos, pelo detalhe e pela riqueza do fragmento. Disse a artista que “um dia estava desenhando a montanha e as manchas dentro da montanha chamaram a minha atenção, pois mudam o tempo todo. Observei as nuvens e luzes e sombras incidindo na montanha e tive vontade de pintar aquilo. Assim começou esta série de trabalhos”.
Origem e destino, mistério, alquimia e outras cosmogonias se abrem permeadas por luas, cores, vestígios do campo do visível que tocam o invisível, assim como o que cintila na poesia de Herberto Helder: “Solitária a lua cheia suspensa sobre uma casa na margem do rio. Debaixo da ponte corre a água noturna. Está vivo o ouro derramado no rio. O meu cobertor brilha mais que seda preciosa. As montanhas silenciosas sem ninguém. O círculo sem mácula – a lua gira entre as constelações”.
Bianca Coutinho Dias